Entrevista

Rodrigo Sá Motta fala sobre nova edição de “Em guarda contra o perigo vermelho”

O discurso anticomunista foi justificativa para a implantação das duas ditaturas mais durarouras do Brasil, em 1937 e 1964. No livro “Em guarda contra o perigo vermelho” (Eduff), disponível para compra na livraria virtual www.eduff.com.br, o historiador Rodrigo Patto Sá Motta traz um estudo detalhado sobre os valores, crenças, medos e ações de grupos brasileiros que ao longo do século XX lutaram contra o chamado “perigo vermelho” e de que forma esses movimentos políticos contribuíram para construção da máquina policial-repressiva do Estado brasileiro.

Publicada pela primeira vez em 2002, a nova edição lançada pela Eduff tem no posfácio uma análise do contexto da recente mobilização da direita radical, que oferece subsídios para compreensão dos elementos que integram os dilemas atuais do Brasil.

Em entrevista à equipe da Eduff, o autor explica as origens do anticomunismo, seu papel na história recente do Brasil e como esse fenômeno ainda está presente no país, embora com algumas atualizações.

Confira a íntegra da entrevista com Rodrigo Patto Sá Motta:

De que forma podemos definir o fenômeno do anticomunismo abordado no livro “Em guarda contra o perigo vermelho”?

Primeiro, vale ressaltar que as ideias comunistas engendraram diferentes projetos políticos, no livro estudo basicamente as campanhas contra o comunismo de linhagem bolchevista e soviética.

Nesse sentido, o anticomunismo seria um conjunto de ações e de ideias implicando rejeição integral e combate visceral ao comunismo. Anticomunistas seriam os indivíduos e grupos dedicados à luta contra o comunismo, pela palavra ou pela ação. A base de sua atuação estaria centrada, portanto, em atitude de recusa militante ao projeto comunista, o que gerou várias linhas de ação, desde a propaganda à repressão, assim golpes e conflitos bélicos.

Um detalhe fundamental: na prática outros segmentos da esquerda acabaram sendo atingidos também pelas campanhas anticomunistas, seja por erro de cálculo ou por má-fé e oportunismo dos líderes dessas campanhas.

A partir de que momento histórico o movimento anticomunista ganha força no Brasil e quais grupos se utilizaram dessa retórica para se estabelecer ou permanecer no poder?

Existe anticomunismo desde o fim do século XIX, mas o fenômeno ganhou maior força depois da Revolução Russa (soviética) de 1917. A ascensão dos bolcheviques ao poder na Rússia causou impacto muito forte: o que antes era somente uma promessa e uma possibilidade teórica transformou-se em existência concreta. No campo da esquerda, os eventos de 1917 geraram entusiasmo, mas na direita emergiu grande pavor, que deu origem aos movimentos anticomunistas.

No Brasil, desde os anos 1920 encontramos manifestações de teor anticomunista, mas o fenômeno tornou-se realmente significativo nos anos 1930, em especial depois da “Intentona Comunista” de 1935. A reação liberal-conservadora contra o levante da Aliança Nacional Libertadora produziu profundos efeitos políticos, dando origem a uma tradição que segue presente e atuante.

Considerando a segunda parte da questão, o fenômeno anticomunista não envolveu apenas a luta pelo poder. Alguns grupos lutaram para eliminar o que consideravam uma ameaça esquerdista em nome de preservar a ordem social e mesmo a moralidade tradicional. Essa é uma questão importante notadamente para os religiosos. Mas, de fato, o medo aos “vermelhos” foi manipulado tendo em vista a conquista e a manutenção do poder político, e nesse aspecto se destacaram certas lideranças políticas de direita e os militares. Mas o empresariado também se destacou nesses movimentos, em nome da defesa da propriedade privada, mas também para permitir a repressão a movimentos de trabalhadores que reivindicam melhor distribuição da renda.

No seu livro, fica evidente para o leitor que o anticomunismo foi o argumento utilizado em dois períodos emblemáticos da história brasileira, de 1935 a 1937 e de 1961 a 1964, quando a “luta contra o perigo vermelho” foi transformada em força política que culminou em dois golpes de Estado. Na sua avaliação, esse mesmo argumento pode desencadear movimentos semelhantes aos de 1937 e 1964, ainda hoje?

De certo modo, nós já estamos vivendo uma situação semelhante a 1937 e a 1964. Como naquelas ocasiões, vimos surgir uma espécie de frente ampla de direita que se unificou em torno da rejeição a projetos de esquerda. O impeachment de 2016 e o resultado das eleições de 2018 foram impactados por uma pauta anticomunista, mais precisamente, antipetista, e a direita autoritária se fortaleceu muito, impulsionada pela ojeriza que muitas pessoas desenvolveram a tudo que represente a esquerda e “vermelho”.

Não seria possível a eleição de Bolsonaro sem esse fenômeno antiesquerdista visceral. Entretanto, não necessariamente haverá no fim uma ditadura clássica, como nas ocasiões anteriores. É certo que muitos líderes da direita radical gostariam disso, e vivem a clamar por uma intervenção militar e um novo AI-5.

Mas os tempos são outros e seria difícil manter uma ditadura ao estilo antigo. O mais provável seria um regime autoritário híbrido, como em alguns países da Europa oriental, que pode estar sendo construído aos poucos no Brasil. É fundamental as pessoas comprometidas com a democracia resistirem a essa marcha autoritária, que tem contado com a ajuda consciente ou inconsciente de muitas lideranças de “centro” que têm minimizado a ameaça associada ao atual governo.

Em termos de representação, é possível verificar mudanças ou adaptações em relação ao imaginário construído sobre o perigo que representa o comunismo para aqueles que lutam contra ele ainda no século XXI?

Sim, é importante perceber as peculiaridades do anticomunismo atual em relação à tradição anterior. Um dos temas-chave é compreender a combinação complexa entre anticomunismo e antipetismo. Seguramente, esta será agenda acadêmica relevante para os próximos anos, tanto o estudo do antipetismo como a análise do modo de apropriação do imaginário anticomunista nesse quadro.

Em parte, isso se explica pela estratégia das direitas de aproveitar-se oportunisticamente de tradição enraizada no Brasil, mobilizando antigos temores e obsessões para lutar contra o inimigo atual. Por outro lado, a manobra é viável porque o PT tem de fato um núcleo marxista (embora pouco influente nos governos de Lula e Dilma), o que alimenta e confere verossimilhança a tais discursos. Para muitos grupos da direita, o PT representa a reencarnação do tradicional perigo vermelho, daí o uso da expressão comuno-petismo para designar a ameaça esquerdista presente.

Outras mudanças importantes envolvem a sensibilidade religiosa conservadora, cuja vanguarda atual são os evangélicos e não mais os católicos (ainda que entre estes sigam atuantes certas alas conservadoras). Além disso, embora continue a culpar a esquerda pelas mudanças comportamentais, a opinião conservadora de hoje se preocupa com temas que estavam ausentes em períodos anteriores, como as demandas por igualdade de gênero e o respeito à diversidade de opções sexuais.

Mais um ponto relevante: os argumentos liberais contra a esquerda tornaram-se mais fortes em comparação a momentos passados, o que indica mudanças importantes nos valores de parte da sociedade brasileira. A defesa das virtudes do mercado, acompanhada de críticas ao Estado e a sua suposta ineficiência sensibilizam a muito mais gente do que em períodos anteriores, mesmo que ainda não sejam valores majoritários entre os brasileiros.

Um dos temas prediletos do anticomunismo clássico segue presente, a figura do inimigo estrangeiro amedrontador, porém, com algumas peculiaridades. A ameaça externa já não é mais a União Soviética, obviamente. Mas China e Cuba permanecem presentes no imaginário anticomunista, apesar das mudanças de rumo da primeira (será ainda socialista a China?) e da fragilidade da segunda.

A contratação de médicos cubanos para atender a regiões pobres e carentes de assistência à saúde no Brasil foi útil para os que queriam imaginar provas da infiltração comunista nos governos petistas. Na linha da ameaça externa, também tem sido muito mobilizado o perigo “bolivariano”, que é associado, toscamente, à tradicional ameaça vermelha e ao PT, assim como o Foro de São Paulo foi denunciado como uma espécie de internacional comunista da América Latina.

A propósito, mas pensando em conexões internacionais pelo viés contrário, as organizações e lideranças de direita recebem influência do exterior, em especial dos Estados Unidos. Por isso, é indispensável considerar as redes transnacionais que constroem e divulgam os valores de direita e o antiesquerdismo militante. No entanto, há que estar atento às peculiaridades do Brasil, de outro modo não entenderíamos as razões do sucesso da reapropriação das tradições anticomunistas, o que nem sempre se observa em outros países. Isso se deve ao caráter arraigado de tais tradições entre alguns grupos, notadamente militares, religiosos e classes dominantes, que historicamente tiveram sucesso na construção de blocos direitistas unidos em torno do anticomunismo.

Apesar de ser essencial a análise do fenômeno anticomunista para compreensão da história do século XX, os estudos nessa área não são tão numerosos. Ao que o senhor atribui essa escassez de pesquisas acadêmicas sobre o tema?

Os movimentos e ideias de direita em geral são menos pesquisados do que temas associados ao campo progressista. Durante certo tempo houve até preconceito contra investigar as direitas, pelo risco do pesquisador ser confundido com seu objeto. Além do mundo acadêmico, os partidos de esquerda também menosprezaram o estudo das direitas.

Chama a atenção que o Partido Comunista desdenhava do anticomunismo, e o mesmo parece estar acontecendo em relação ao PT e ao antipetismo, pois percebemos que líderes do PT tentam minimizar a relevância do antipetismo. Talvez seja um cálculo político, baseado na preocupação de não colocar muito em evidência o inimigo. Mas é preciso estudar e entender esses movimentos de direita, pois o seu impacto político tem sido muito forte, particularmente na história do Brasil. Trata-se de uma questão acadêmica, mas também de um desafio político para quem preza a democracia.

Eu acredito que o conhecimento pode ajudar a definir certas linhas de ação política. De qualquer forma, o mundo acadêmico “despertou” para o tema das direitas nos últimos anos e as pesquisas e publicações estão ganhando volume. Por isso mesmo é importante a reedição deste livro, pois é um trabalho pioneiro que pode apontar alguns caminhos de pesquisa.

Passados alguns anos desde a primeira edição do seu livro, qual ou quais são as principais contribuições da sua pesquisa sobre o anticomunismo para compreensão da história recente do Brasil?

O livro não inaugurou as pesquisas sobre o anticomunismo, já que obras importantes serviram de referência. No entanto, creio ter dado contribuição original ao mostrar a profundidade do fenômeno e ao apontar sua relevância para a história política do Brasil, o que não havia sido devidamente percebido até então.

No que toca ao conhecimento sobre 1964, por exemplo, prevalecia a visão de que o anticomunismo não passou de engodo para justificar a intervenção e que os temas principais da retórica golpista teriam sido o antipopulismo e o antirreformismo. Além disso, o livro ajudou a mostrar que o fenômeno é complexo e constituiu o cerne de tradições políticas arraigadas, tendo se tornado elemento fundamental nas mobilizações direitistas – invariavelmente autoritárias – e, também, na montagem de longeva máquina repressiva de natureza judicial, policial e militar (DOPS, leis repressivas, tribunais de exceção).

Acontecimentos recentes no Brasil, mas também em outras partes do mundo, tornaram o objeto do livro plenamente atual nesta segunda década do século XXI. Na conclusão da edição original, escrita nos primeiros meses de 2000, falei em arrefecimento dos conflitos ideológicos e possível fenecimento do anticomunismo, embora destacasse a continuidade das disputas esquerda x direita. Naquele momento era improvável imaginar que, em pouco menos de duas décadas, o “perigo vermelho” voltaria a ser importante na conformação de novo cenário político polarizado.

O livro não previu a emergência de nova onda anticomunista, o que demandaria virtudes proféticas. De qualquer modo, os últimos acontecimentos confirmam o acerto da sua tese central: a existência de uma tradição anticomunista arraigada no Brasil, disponível para novas apropriações.

Sobre o autor:

Especialista em História do Brasil contemporâneo, Rodrigo Patto Sá Motta é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Produziu trabalhos de referência sobre partidos, cultura política, ditaduras, polícia política, movimentos de direita, entre outros temas. Já atuou como professor e pesquisador visitante em várias universidades estrangeiras e foi presidente da Associação Nacional de História.

 

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