Entrevista

Ana Cláudia Peres reflete sobre narrativas urbanas no jornalismo em “As cidades narradas”

O apreço do jornalismo contemporâneo pelo rigor técnico e pela imparcialidade das informações traz consigo, não raramente, o reducionismo dos fatos, dos contextos e principalmente dos personagens. E a cidade, cenário e ator de muitas histórias, fica também distanciada da realidade, da poesia e dos afetos que a constituem. Em “As cidades narradas: uma cartografia de paisagens possíveis para o jornalismo”, lançado pela Eduff, disponível para compra na livraria virtual em www.eduff.com.br, a jornalista Ana Cláudia Peres demonstra que é possível construir uma narrativa jornalística que vá além dos dados e das estatísticas, e se deixa atravessar pela própria experiência do repórter e daquele a quem se dirige a notícia.

Em entrevista concedida à Eduff, a autora fala da importância do que ela denomina de “narrativas do avesso”, ou seja, aquelas narrativas jornalísticas que enxergam as cidades para além de um cartão-postal e privilegiam seu enredo simbólico, sem se ater apenas a uma cartografia física do espaço. Narrativas que integram e dão voz aos personagens, indo além de declarações oficiais. Narrativas que abrem novas possibilidades de compreensão dos acontecimentos e por isso são capazes de superar a reprodução de um discurso unificado.

Confira a entrevista que a autora concedeu à Eduff:

A partir de que observação surgiu seu interesse pela abordagem dada à cidade pelo jornalismo contemporâneo?

Sou jornalista e sempre fui uma apaixonada pelas redações, pela rua, pelo texto e pelos infinitos modos de narrar as cidades: na literatura, no cinema, também no jornalismo. Mas quando ingressei no mestrado, acho que andava precisando discutir a relação com o jornalismo. Como repórter ou como editora de jornal e revista, sempre me incomodou o exercício de um jornalismo meramente técnico. O jornalismo preso ao mito da objetividade, da imparcialidade, da neutralidade, muito preocupado com os dados e estatísticas ou com a informação pura, esse jornalismo, como diz Canclini, “empobrece a cidade”, que é um espaço muito mais vivo, de disputas e produção de sentidos. Então, posso dizer que o interesse primeiro veio não de uma observação específica sobre um veículo ou sobre a produção autoral de um jornalista qualquer. Olhar para a cobertura jornalística dada às cidades por uma perspectiva mais cartográfica, como se fosse possível tecer uma encruzilhada de textos, foi a minha tentativa – meio arriscada, bem verdade –, mas uma tentativa de me apaixonar de novo pelo jornalismo.

A que você atribui esse reducionismo das cidades como “cartões-postais de natureza asséptica” que resumem o espaço urbano em um único “retrato”?

As pressões cotidianas, os prazos curtos, a ideologia dos veículos sempre foram justificativas para uma produção até correta do ponto de vista da técnica, mas absolutamente superficial em termos de relação com o Outro. Esse jornalismo hegemônico, tradicional, movido pelo paradigma informacional, no afã de dar conta do mundo, acaba produzindo relatos midiáticos burocráticos e redundantes, que tentam enquadrar a vida segundo uma lógica autoritária e acabam contribuindo para reproduzir, mais do que alterar, uma ordem social. No entanto, há espaço no jornalismo para o exercício de uma prática dialógica que, sem abrir mão da técnica, seja atravessada também pelos afetos e pela experiência daqueles que informam e também dos que recebem a informação. Trata-se de um paradigma relacional, para o qual autores como Cremilda Medina e Vera França sempre nos alertaram, pautado pela complexidade do processo que envolve a comunicação entre sujeitos. Quando utilizei a metáfora do cartão-postal quis chamar a atenção para isso – para o fato de que a paisagem do postal também comporta um avesso, um outro lado a ser preenchido e que pode revelar as muitas cidades que existem em uma; ou, se quisermos também, os muitos jornalismos possíveis.

O que se perde com dogmatismo da abordagem jornalística do espaço urbano? Em que medida a busca pela objetividade e imparcialidade dos fatos comprometem a narrativa da vida citadina?

As narrativas hegemônicas, tradicionalmente aceitas pelo jornalismo, e que chamei neste trabalho de “narrativas cartão-postal” enquadram a cidade na moldura de um jornalismo que se pretende neutro, objetivo, imparcial, que não admite os restos ou a sobra da cidade, transformando-se em algo chapado e muito pouco estimulante. Perde-se a possibilidade de enxergar uma cidade que existe para além da cena clichê e do lugar comum. Perde-se também a possibilidade de um jornalismo configurado como uma prática mais rica e plural, que não deseja apenas um ordenamento do mundo e onde caiba também aquilo que é desvio ou que está em desalinho. A busca pela objetividade é uma estratégia do jornalismo e não se pretende negar a checagem minuciosa de dados ou o cuidado com a informação como se fossem algo descartável para a prática jornalística. Ao contrário disso, o que se pretende é evidenciar que existem outros elementos, como a experiência do próprio repórter e outras subjetividades que podem ser incorporadas às narrativas sobre cidades sem que se perca o compromisso com os fatos.

Como é possível fugir desse modelo, de certo modo engessado, e buscar novos olhares para as cidades?

Neste livro, procuro apontar algumas pistas que evidenciam outras paisagens possíveis para o jornalismo, mas devo lembrar que não estou propondo um modelo novo. Elas já são localizadas nas páginas de nossa imprensa, apesar da nossa imprensa (risos). Essas narrativas que chamei de “narrativas do avesso” são narrativas jornalísticas que dão conta do enredo simbólico da cidade e que não levam em conta a cartografia meramente física ou geográfica. Nelas, as informações, os dados, os números estão todos presentes, mas eles não existem para dar conta do real (como se esse real fosse possível de ser abarcado) – eles servem à narrativa. Narra-se a partir dos personagens da cidade e não a partir dos discursos declaratórios e dados oficiais. Trata-se ainda da possibilidade de se surpreender com o trivial, não necessariamente com o extraordinário, mas com as pequenas rupturas cotidianas, e de seguir a trilha dos vestígios e de um percurso deixado à mostra, o que permite ao leitor a possibilidade de ressignificar a informação e de melhor compreender os acontecimentos.

Qual a importância de trazer para o jornalismo novas formas de narrar as cidades e seus personagens?

Quem sabe esses outros modos de narrar evoquem um tipo de texto que leve o leitor a dar outros significados à notícia ou ainda a recriar as cidades e, por este motivo, nos interessam mais enquanto sintoma de um outro jornalismo que se sobressaia na era da autoridade da técnica, um jornalismo que em vez do código do real seja tomado pelo signo dos afetos e da relação. Quero acreditar que, ao tecer narrativas que nos apresentem uma cidade plural, ruidosa e polifônica nascida das experiências vivenciadas por seus habitantes, o jornalismo consiga, mais do que fornecer informação, reconhecer a existência do Outro, afetar sujeitos e possibilitar encontros.

É possível identificar alguma relação entre tipos de mídia (TV, jornal, rádio, etc.) e a maior ou menor liberdade para o exercício de uma narrativa que valorize a cidade na sua totalidade?

Acredito que existam pesquisas que escrutinem essa relação entre as rotinas de produção e a liberdade de narrar, levando em conta as características e especificidades de veículos e formatos. Para o interesse desta minha pesquisa, a tentativa era problematizar a narrativa. Talvez porque minha experiência esteja mais relacionada ao jornalismo impresso, escolhi olhar para páginas impressas. E na página impressa, há espaço para múltiplos narrares, cabe tanto a cidade do condomínio fechado quanto a que sobra nas calçadas; a reportagem investigativa e a crônica. Procurei deixar claro que o excesso de informação, números, datas, estatísticas, gráficos são uma pretensão de dar mais credibilidade ao relato e justificar a objetividade. Mas não bastam para encerrar a complexidade do mundo. Por outro lado, é justamente ao contar histórias de vida, dando a ver as diversas realidades e não uma única, que o jornalismo se justifica como espaço de relação.

É possível citar exemplos de veículos, profissionais ou reportagens que fogem a esse senso comum?

Sim, é possível. Posso falar de Eliane Brum ou Fabiana Moraes e de veículos como Agência Pública, mas existem inúmeros outros jornalistas, inclusive dentro da chamada imprensa hegemônica. Insisto que, na minha pesquisa, tentei fugir da armadilha de reduzir a discussão a uma questão autoral ou de estilo. Sendo assim, não defini o corpus em torno de um veículo, autor ou período histórico: tomo como ponto de partida as narrativas sobre cidades da Revista Piauí que, ao combinar o real e o poético, ampliam o fato. Mas aos textos dessa revista são justapostos outros textos localizados em veículos contemporâneos como parte de um esforço para cartografar esse tipo de narrativa. A revista é apenas um recorte necessário para a observação de alguns elementos. Para mim, a narrativa é maior do que os suportes e as rotinas jornalísticas. E a análise de narrativas era o meu problema. Sempre que falo sobre este trabalho, sugiro como exercício – até para mim mesma – continuar localizando textos na imprensa contemporânea que dialoguem com as questões que esta pesquisa me provoca. E ainda me surpreendo como eles existem, como eles ainda estão por aí a espera de serem lidos.

No livro, você fala das “narrativas do avesso” como possibilidades para se reinventar uma imprensa que seja crítica e comprometida com o coletivo. De que modo um jornalismo mais “afetivo” pode contribuir para o desenvolvimento da coletividade e de uma sociedade democrática?

Em plena era da convergência midiática, quando as novas tecnologias estão modificando em uma velocidade acelerada o modo de produção e de consumo de notícias, esses outros possíveis do jornalismo que apontamos nesta pesquisa podem se constituir como um indício de resistência no jornalismo praticado hoje e na própria condição da profissão de jornalista. No meu doutorado, tentei dar um passo além ao investigar o papel do “testemunho” numa tese intitulada “O que resta dos fatos: testemunho e guinada afetiva no jornalismo”, onde segui investigando outras pistas em direção a um jornalismo cujo papel social seja ressaltado, um jornalismo que nos interpele de alguma maneira. Continuo apostando que há um modo possível de narrar no jornalismo que nos interpela justamente pelo que escapa da técnica e que se manifesta no espaço contingencial da relação, no encontro possível entre o mundo do jornalista e o mundo da fonte, quando as nuances, os percalços, os conflitos desse contato entre sujeitos são incorporados pela narrativa. Como resume Maria Lucília Marco em diálogo com o filósofo Levinas, há algo de muito valioso nas relações “que interrompem alguma coisa, que nos interrompem, que nos roubam a pacatez, que não nos deixam indiferentes, mas que fazem a diferença e nos perturbam na nossa identidade, na nossa mesmidade”. Nos tempos atuais, isso já não é pouco.

Sobre a autora:

Doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, Ana Cláudia Peres faz parte da equipe de jornalismo do programa Radis – Comunicação e Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), onde atua como repórter. No jornal O Povo, de Fortaleza (CE), exerceu as funções de repórter, editora-adjunta e editora-executiva do caderno de cultura. Entre 2005 e 2010, coordenou o Núcleo de Comunicação Popular e Alternativa da Prefeitura Municipal de Fortaleza.

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