Entrevista

Giselle Martins Venancio e André Furtado, sobre edição francesa de “Mestiça cientificidade”

Lançado pela Eduff, o livro “Mestiça cientificidade”, dos historiadores Giselle Venancio e André Furtado, ganhou recentemente uma tradução para o francês pela editora LPV direct, com o nome “Métisse scientificité: Gilberto Freyre selon trois lecteurs français”.

Em entrevista à Eduff, os autores falaram sobre o tema abordado no livro e sua importância para o público francês:

Embora publicado no início da década de 1930, “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, ganhou edições em países como Argentina, Estados Unidos e Inglaterra nos anos de 1940 e, por fim, chega à França em 1952, quase dois decênios após a primeira edição brasileira. A que se deve essa “demora” e por que a publicação francesa pode ser considerada a consagração universal da obra e do seu autor?

Não há demora, mas recorde! Estamos falando de um processo voltado à produção de livros de quase um século atrás quando, no Brasil, o mundo editorial começava paulatinamente a estabelecer esse mercado de bens culturais, ainda pouco demarcado por uma relativa autonomia e cuja expressão máxima se faria sentir com a sedimentação, entre outros intervenientes, da figura do editor.

Além disso, se considerarmos que “Casa-Grande & Senzala” foi lançado em 1933, sua tradução para o espanhol, menos de uma década depois, quando saiu em Buenos Aires nos anos de 1942 e 1943, pode-se dizer que os contemporâneos dessa autoria nova que despontava na cena pública estavam diante de um fenômeno que, em áreas não literárias, tinham um caráter inédito. Os principais críticos à época, aliás, não deixaram de notar isso e, inclusive, destacaram o sentido de divisor de águas que o trabalho de Gilberto Freyre representava em relação aos seus predecessores, face às inovações de perspectivas e uso de fontes não convencionais para debater a formação histórica da sociedade brasileira.

Ainda naquele decênio do aparecimento do livro, como “Casa-Grande y Senzala”, na capital argentina, impresso pelo Ministério de Justicia e Instrucción Publica e a Emecé Editores, Freyre revela todo o seu poderio ao ser traduzido para o inglês com “The masters and slaves”, idioma por ele considerado o latim sociológico – conforme apontamos em nosso livro, “Mestiça cientificidade” –, pois saiu pela prestigiada editora Alfred A. Knopf, primeiro em Nova York no ano de 1946 e, no ano seguinte, em Londres, através de sua filial europeia.

Assim, quando observamos tais aspectos e temos esses dados diante dos olhos, não chega a ser uma surpresa a conquista freyriana do território hexagonal a partir de Paris, quando a sua chamada obra de estreia surge pela reconhecida editora Gallimard – uma das mais importantes do continente –, publicada como “Maîtres et esclaves”, em 1952. Desse momento em diante é possível considerar que se trata de sua consagração autoral exatamente porque a França ocupava um lugar de destaque – que até hoje se mantém, dado o vigor e pujança de sua produção – junto às interfaces e trocas letradas promovidas pela intelectualidade brasileira pelo menos desde o século XIX.

Seria crível afirmar, inclusive, que os agentes e instituições deste país ditavam, por assim dizer, as regras do campo no sentido de pautar uma parcela considerável da agenda de pesquisas nas áreas de Ciências Humanas e Sociais que, embora não totalmente definível, eram os domínios que a obra de Gilberto Freyre poderia ser situada. Então, ser publicado nesta língua representava a possibilidade de atingir uma visibilidade que, de outro modo, seria impossível caso seus pensamentos em papel e tinta continuassem a circular exclusivamente em português, idioma longe de ser a segunda ou a terceira opção dos poliglotas.

Por que a recepção da obra de Gilberto Freyre na França, em especial, foi objeto de estudo em “Mestiça cientificidade”?

Conforme apontávamos anteriormente, a França e, fechando mais o compasso, Paris, em especial, correspondia a um polo decisivo para a consagração intelectual justamente pelos motivos antes expostos e que, naquele momento, ganhavam todo um sentido especial. Isso porque nossa escolha observou não apenas o poderio simbólico de ser traduzido para o idioma de Montaigne e na editora Gallimard – que por sua vez convertia-se em ganhos econômicos para o autor –, mas, conferimos atenção, particularmente, aos leitores com os quais nos ocupamos: Fernand Braudel, Roger Bastide e Lucien Febvre.

Esses três críticos, cada qual a seu modo e momento, contribuíram sobremaneira para inserir Gilberto Freyre naquilo que chamamos de vitrines do Greenwich literário. Fernand Braudel – mais tarde reconhecido também, ele próprio, como um importante historiador que deu sequência à liderança da chamada Escola dos Annales –, abordou a obra de Freyre em um texto veiculado na revista Mélanges d’Histoire Sociale (nome disfarçado dos Annales), e o fez ainda no curso da Segunda Guerra Mundial, quando se achava encarcerado numa prisão de oficiais militares presos pelo Terceiro Reich, no norte da Alemanha; Roger Bastide, na qualidade de interlocutor da obra freyriana, apreciou a narrativa de “Casa-Grande & Senzala” no curso da tradução em si, comentando e debatendo seus principais aspectos; e Lucien Febvre, líder de toda uma geração de historiadores franceses – considerado um dos “pais fundados” dos Annales ao lado de Marc Bloch, posta-se como uma espécie de avalista de Gilberto Freyre ao prefaciar o livro em 1952 com um tom bem elogioso e entusiasmado com o trabalho que então apresentava aos europeus.

Por conta de todas essas circunstâncias, mal poderíamos dizer que escolhemos o objeto de estudo totalmente de forma livre: em parte ele se impôs a nós no transcurso de nossas pesquisas que, na ocasião, recebiam fomentos da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

A publicação francesa de Freyre, acompanhada da sua consagração internacional, contribuíram, em alguma medida, para mudança de paradigmas dos europeus em relação ao Brasil?

Giselle Martins Venancio, André Furtado – Totalmente! Bastaria, para tanto, observar o terceiro leitor que abordamos em “Mestiça cientificidade”: Febvre faz questão de explicitar com todas as letras, no prefácio, que o mundo acadêmico e a intelectualidade do Velho Continente deveriam mirar o exemplo de “Maître et esclaves” para realizar suas pesquisas e produzir seus próprios textos. Colocava, assim, a obra do brasileiro como modelo a ser seguido, sinônimo de excelência e experiência narrativa bem-sucedida para descrever o passado de um país.

Qual a importância de se analisar a obra de Freyre a partir da leitura das resenhas de autores como Fernand Braudel e Lucien Febvre e das considerações do tradutor da obra para o francês, Roger Bastide?

Giselle Martins Venancio, André Furtado – A importância está em descortinar um horizonte investigativo pouco explorado no Brasil: o da recepção de uma obra, vinculando-se às perspectivas da história do livro, da edição e da leitura. Os estudos que têm como objeto as resenhas críticas ainda são raros em nosso país. Há, é verdade, alguns trabalhos que usam uma ou outra resenha para abordar leituras. Porém, uma abordagem sistemática das resenhas como um meio de aferir a recepção das obras de modo mais amplo ainda é pouco usual nos estudos da historiografia brasileira.

O interesse dos franceses pela obra de Gilberto Freyre seria um marco da influência que o pensamento do autor começa a despertar numa Europa que até então era influenciadora da cultura no Brasil e nas Américas de forma geral?

Interessante refletir rapidamente sobre a ideia de influência. Michael Baxandall, em um importante texto, “Digressão contra a noção de influência”, demonstra como essa noção pode nos levar a equívocos.

Melhor que falar em influência, talvez seja referir-se a usos, apropriações. Baxandall evidencia como “ao fazer uso, alinhar-se com, reagir a, citar, diferenciar-se de…” as obras vão trilhando caminhos de consagração, ou contrariamente, de esquecimentos. Assim, podemos dizer que sim, a obra de Gilberto Freyre foi amplamente apropriada no pensamento europeu nos anos 50 e 60, não apenas na França, mas também em Portugal.

Como sabemos, há já uma série de estudos que apontam os usos da obra de Freyre, por exemplo, pelo salazarismo em Portugal, além de autores que tratam das apropriações da obra de Freyre em estudos das ciências do homem na França.

Recentemente, “Mestiça cientificidade” ganhou uma tradução para o francês pela editora Le Poisson Volant (LPV). Essa mudança de direção, uma vez que se trata de uma obra brasileira sendo traduzida para o francês, ainda hoje, pode ser considerada uma virada de chave?

Com certeza. É importante que esse livro possa alcançar também o público francês, visto que é, justamente, a recepção da obra de Freyre no espaço francês que ele aborda. E respondendo a sua pergunta, se é uma virada de chave, acreditamos que sim, pois no amplo mercado de circulação internacional das ideias os textos traduzidos do português ainda ocupam uma posição muito periférica. Mais comum é vermos textos sendo traduzidos para o português. Então, consideramos uma conquista importante a publicação da versão francesa deste livro.

E o gesto, aliás, é um elemento a mais no processo de internacionalização da produção acadêmica que integra o catálogo da Editora da Universidade Federal Fluminense, a Eduff, cuja equipe, aqui representada por seu editor, professor Renato Franco, merece todo o nosso agradecimento pela liberação dos originais em português para a tradução.

Além disso, precisamos agradecer, imensamente, à editora que nos acolheu calorosamente: Le Poisson Volant Éditeur. Também foram muito importantes as atuações da professora Denise Rollemberg, da UFF, coordenadora do projeto Capes-Cofecub intitulado “Ideias em tempo de Guerra Fria”, do qual fazemos parte, pela autorização do financiamento da revisão final da versão francesa. Aproveitamos essa oportunidade para igualmente agradecer o prefaciador das edições brasileira e francesa, o Professor Antonio Dimas, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), e as tradutoras Laure Collet e Céline Marie Agnes Clement.

Como vocês avaliam a importância da publicação francesa e quais as suas expectativas em relação à recepção do leitor francês?

Como já dissemos, achamos importante essa publicação porque teremos a possibilidade de acessar a crítica francesa sobre nossas análises. Não podemos esquecer que abordamos a obra de Gilberto Freyre e sua recepção em um momento em que ela ainda não havia sido atrelada aos governos autoritários português e brasileiro. Estamos falando de um Freyre dos anos 50, que ainda não ocupava as “fossas infernais”, para usar uma expressão de Alcir Pécora.

Assim, nosso objetivo não é “resgatar” a obra de Freyre, ou questionar as críticas a ela atribuídas, mas refletir sobre a sua recepção condicionada por um momento histórico específico, o pós-Segunda Guerra. Nesse sentido, pensamos que é muito importante podermos ter oportunidade de sermos lidos pelo público francês.

 

Sobre os autores

Giselle Martins Venancio é professora de Teoria e Metodologia do Instituto de História (IHT) da Universidade Federal Fluminense (UFF), atuando tanto na graduação quanto no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH-UFF). Bolsista de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Cientista do Nosso Estado da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

André Furtado é professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Graduado em História pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb), mestre e doutor nesta área pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com estágio na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS / Paris). Fez pós-doutorado com bolsa da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

A edição original publicada pela Eduff em português está disponível para compra no site www.eduff.com.br.

Skip to content